Historicamente, tijolos são importantes para os homens. Temos uma forma muito peculiar de dar valor a certas coisas. Na antiguidade, os egípcios eram conhecidos por “empilhar” tijolos de forma pitoresca. Até hoje as famosas pirâmides servem como inspiração artística e referência arquitetônica.
A grande maioria das “maravilhas do mundo”, sejam elas antigas ou modernas, se baseavam em tijolos. É muito interessante observar que o homem tem uma necessidade de imprimir seu legado, de projetar algo concreto, de promover algo visível e palpável sobre a sua própria existência a fim de prolongar sua estada na Terra.
Hoje, grande parte da população humana vive em centros urbanos onde os tijolos têm um papel fundamental no cotidiano das pessoas. Nossa selva de pedra é essencialmente formada por tijolos que produzem obras suntuosas, formando os grandes monumentos da modernidade. As construções faraônicas ainda hoje alimentam uma rivalidade medíocre de vaidades.
Infelizmente, a fé, na maioria dos casos, é baseada no que vemos. Crer em algo abstrato e de dimensões desconhecidas não é muito atraente para nós. Temos uma falsa necessidade de conforto e abrigo por meio do concreto. Existe uma lamentável inversão de valores, até o momento que a terra treme e tudo o que consideramos reflexo de segurança e comodidade vai ao chão.
Percorrendo as ruas da devastada Porto Príncipe, capital do Haiti, pude observar muito ferro retorcido e quantidades inimagináveis de tijolos em forma de escombros. Ironicamente, segundo as crenças egípcias, as pirâmides tinham o propósito de criar uma atmosfera favorável para o processo de transição da vida após a morte. As gigantescas tumbas eram responsáveis por grande parte da produção de tijolos da época. Essencialmente, a situação é a mesma. A única diferença é que no Haiti as pessoas foram sepultadas com vida, mas o paralelo entre os tijolos era evidente para mim. Vi grandes tumbas formadas por escombros permeando as ruas da cidade. Imaginar que, em poucos segundos de tremor, grandes construções e até palácios se transformaram em tijolos destroçados, formando uma terrível imagem do caos.
Gostaria de apagar da memória algumas imagens que presenciei. Vi muito lixo e esgoto a céu aberto, vi a fome das pessoas, vi o desespero de alguns vagando sem rumo e sem perspectiva. Estima-se que existam mais de dois milhões de desabrigados. Os escombros serviam apenas para emoldurar o caos. Definitivamente não podemos transcrever a situação com palavras.
Quando entramos no Camp (acampamento de desabrigados) de Sité Soleil, vi uma realidade áspera e de difícil digestão (curioso falar em digestão no Haiti, nunca fiquei tanto tempo sem comer). Segundo fontes confiáveis, este Camp é um dos mais perigosos do Haiti. Lá pudemos ver milhares de pessoas vivendo em condições subumanas. Não há banheiros e a ajuda humanitária tem muita dificuldade para levar água e comida nesta região. Famílias inteiras vivendo em barracas no meio da lama e do lixo. Éramos recebidos com uma hostilidade muda. Os haitianos têm um olhar questionador que falava muito mais do que palavras, aliás, quando alguma palavra era pronunciada por eles era, na maioria das vezes, em creole e, raramente em francês – línguas que evidentemente não dominamos.
Continuando nosso percurso vi uma cena que marcou minha vida. Era um rio de lixo. Toda aquela sujeira e mau cheiro não estavam lá por causa do terremoto que abalou o país em janeiro de 2010. Aquela situação era reflexo de mais de dois séculos de uma independência cativa que o Haiti ainda vive.
Depois de pouco mais de dois meses do terremoto vemos que o país ainda está em choque. Não há nenhum tipo de serviço público. Escolas e repartições públicas ainda estão fechadas. O comércio é informal e absurdamente carente. As construções que ainda permanecem de pé não são utilizadas em razão do medo de novos tremores na região. A cidade de Porto Príncipe adotou as ruas e avenidas como banheiros e dormitórios.
Tive vontade de largar minha câmera e gritar pelas ruas, mobilizar, limpar, organizar… iniciar a reconstrução. Mas a verdade é que quanto mais tempo eu permanecia na região, menos eu queria sorrir; em alguns momentos – confesso: cheguei a desanimar. Comecei a olhar com olhos naturais para a situação e não via saída.
Estávamos com um grupo de missionários que, com recurso brasileiro, compraram 12 toneladas de mantimentos e 30 caixas d’água na República Dominicana e levaram para o Haiti. Para mim foi um grande privilégio participar, ainda que de forma muito tímida, do processo – ajudei a descarregar o caminhão de mantimentos. Esta simples tarefa significou muito para mim. Não é possível documentar uma situação sem realmente vivenciá-la.
Acredito que uma boa imagem vale muito mais do que mil palavras. Diante do caos, a busca por “imagens que falassem” chegava a ser exaustiva. O mais interessante é que, neste momento, eu ainda buscava uma imagem que pudesse me inspirar e me trazer esperança novamente. Pela primeira vez, em muitos anos de profissão, fiquei com o olhar totalmente desfocado (obviamente é muito difícil de descrever…).
Vagarosamente, a imagem da esperança começou a se formar diante dos meus olhos. Na medida em que as fronteiras culturais ficavam menores, as barreiras caíam. Comecei a ver a riqueza do país; dia após dia, as virtudes daquela nação começaram a desabrochar diante dos meus olhos: pessoas inspiradoras, homens e mulheres que baseiam suas vidas em algo muito maior e mais consistente do que tijolos.
A fé de alguns mostrava um certo antagonismo. No meio do caos, era possível observar que algumas pessoas não se renderam ao desânimo e não deixaram sua vontade de viver se abalar pelo tremor. O sorriso no rosto deles servia como mola propulsora para nossas vidas. O desconforto, as dificuldades com o idioma e os transtornos de logística se transformaram em meros detalhes diante da nossa motivação. Finalmente, eu podia visualizar a direção que deveríamos tomar para documentar aquela realidade: Ainda existe esperança!
É tempo de reconstruir! (aqui vale um plágio da obra de um grande amigo)
Percebi que a reconstrução começa no coração, na fé e na esperança. Quando os ideais são mais fortes que as circunstâncias, as coisas realmente acontecem. Saímos do Brasil com o intuito de ajudar e fomos inundados por uma chuva torrencial de esperança. Utilizar a linguagem fotográfica e a narrativa cinematográfica para contar aquela história é, no mínimo, um grande privilégio.
É importante mencionar que minha percepção é um recorte da realidade. Andamos por um país destroçado, corrupto e sem rumo. Muitos vivem sufocados nas tradições religiosas, outros preferem amargar no total ceticismo. Sabemos que é necessário muito mais para ver este povo reverter o quadro desta nação. Ainda assim, entendo que nosso papel não é fomentar uma utopia, mas sim, focar nas flores raras que brotam em meio a sequidão do deserto.
Já estou contando os dias para ver novamente aqueles sorrisos e reencontrar pessoas carentes que nos pediram, sem palavras, para voltarmos. Não vejo a hora de receber mais um banho de motivação e esperança. Preciso ver novamente aqueles que vivem entre os escombros, que lutam por água e comida, mas que se alimentam com fartura da fé em Deus.
por Alyson Montrezol
A grande maioria das “maravilhas do mundo”, sejam elas antigas ou modernas, se baseavam em tijolos. É muito interessante observar que o homem tem uma necessidade de imprimir seu legado, de projetar algo concreto, de promover algo visível e palpável sobre a sua própria existência a fim de prolongar sua estada na Terra.
Hoje, grande parte da população humana vive em centros urbanos onde os tijolos têm um papel fundamental no cotidiano das pessoas. Nossa selva de pedra é essencialmente formada por tijolos que produzem obras suntuosas, formando os grandes monumentos da modernidade. As construções faraônicas ainda hoje alimentam uma rivalidade medíocre de vaidades.
Infelizmente, a fé, na maioria dos casos, é baseada no que vemos. Crer em algo abstrato e de dimensões desconhecidas não é muito atraente para nós. Temos uma falsa necessidade de conforto e abrigo por meio do concreto. Existe uma lamentável inversão de valores, até o momento que a terra treme e tudo o que consideramos reflexo de segurança e comodidade vai ao chão.
Percorrendo as ruas da devastada Porto Príncipe, capital do Haiti, pude observar muito ferro retorcido e quantidades inimagináveis de tijolos em forma de escombros. Ironicamente, segundo as crenças egípcias, as pirâmides tinham o propósito de criar uma atmosfera favorável para o processo de transição da vida após a morte. As gigantescas tumbas eram responsáveis por grande parte da produção de tijolos da época. Essencialmente, a situação é a mesma. A única diferença é que no Haiti as pessoas foram sepultadas com vida, mas o paralelo entre os tijolos era evidente para mim. Vi grandes tumbas formadas por escombros permeando as ruas da cidade. Imaginar que, em poucos segundos de tremor, grandes construções e até palácios se transformaram em tijolos destroçados, formando uma terrível imagem do caos.
Gostaria de apagar da memória algumas imagens que presenciei. Vi muito lixo e esgoto a céu aberto, vi a fome das pessoas, vi o desespero de alguns vagando sem rumo e sem perspectiva. Estima-se que existam mais de dois milhões de desabrigados. Os escombros serviam apenas para emoldurar o caos. Definitivamente não podemos transcrever a situação com palavras.
Quando entramos no Camp (acampamento de desabrigados) de Sité Soleil, vi uma realidade áspera e de difícil digestão (curioso falar em digestão no Haiti, nunca fiquei tanto tempo sem comer). Segundo fontes confiáveis, este Camp é um dos mais perigosos do Haiti. Lá pudemos ver milhares de pessoas vivendo em condições subumanas. Não há banheiros e a ajuda humanitária tem muita dificuldade para levar água e comida nesta região. Famílias inteiras vivendo em barracas no meio da lama e do lixo. Éramos recebidos com uma hostilidade muda. Os haitianos têm um olhar questionador que falava muito mais do que palavras, aliás, quando alguma palavra era pronunciada por eles era, na maioria das vezes, em creole e, raramente em francês – línguas que evidentemente não dominamos.
Continuando nosso percurso vi uma cena que marcou minha vida. Era um rio de lixo. Toda aquela sujeira e mau cheiro não estavam lá por causa do terremoto que abalou o país em janeiro de 2010. Aquela situação era reflexo de mais de dois séculos de uma independência cativa que o Haiti ainda vive.
Depois de pouco mais de dois meses do terremoto vemos que o país ainda está em choque. Não há nenhum tipo de serviço público. Escolas e repartições públicas ainda estão fechadas. O comércio é informal e absurdamente carente. As construções que ainda permanecem de pé não são utilizadas em razão do medo de novos tremores na região. A cidade de Porto Príncipe adotou as ruas e avenidas como banheiros e dormitórios.
Tive vontade de largar minha câmera e gritar pelas ruas, mobilizar, limpar, organizar… iniciar a reconstrução. Mas a verdade é que quanto mais tempo eu permanecia na região, menos eu queria sorrir; em alguns momentos – confesso: cheguei a desanimar. Comecei a olhar com olhos naturais para a situação e não via saída.
Estávamos com um grupo de missionários que, com recurso brasileiro, compraram 12 toneladas de mantimentos e 30 caixas d’água na República Dominicana e levaram para o Haiti. Para mim foi um grande privilégio participar, ainda que de forma muito tímida, do processo – ajudei a descarregar o caminhão de mantimentos. Esta simples tarefa significou muito para mim. Não é possível documentar uma situação sem realmente vivenciá-la.
Acredito que uma boa imagem vale muito mais do que mil palavras. Diante do caos, a busca por “imagens que falassem” chegava a ser exaustiva. O mais interessante é que, neste momento, eu ainda buscava uma imagem que pudesse me inspirar e me trazer esperança novamente. Pela primeira vez, em muitos anos de profissão, fiquei com o olhar totalmente desfocado (obviamente é muito difícil de descrever…).
Vagarosamente, a imagem da esperança começou a se formar diante dos meus olhos. Na medida em que as fronteiras culturais ficavam menores, as barreiras caíam. Comecei a ver a riqueza do país; dia após dia, as virtudes daquela nação começaram a desabrochar diante dos meus olhos: pessoas inspiradoras, homens e mulheres que baseiam suas vidas em algo muito maior e mais consistente do que tijolos.
A fé de alguns mostrava um certo antagonismo. No meio do caos, era possível observar que algumas pessoas não se renderam ao desânimo e não deixaram sua vontade de viver se abalar pelo tremor. O sorriso no rosto deles servia como mola propulsora para nossas vidas. O desconforto, as dificuldades com o idioma e os transtornos de logística se transformaram em meros detalhes diante da nossa motivação. Finalmente, eu podia visualizar a direção que deveríamos tomar para documentar aquela realidade: Ainda existe esperança!
É tempo de reconstruir! (aqui vale um plágio da obra de um grande amigo)
Percebi que a reconstrução começa no coração, na fé e na esperança. Quando os ideais são mais fortes que as circunstâncias, as coisas realmente acontecem. Saímos do Brasil com o intuito de ajudar e fomos inundados por uma chuva torrencial de esperança. Utilizar a linguagem fotográfica e a narrativa cinematográfica para contar aquela história é, no mínimo, um grande privilégio.
É importante mencionar que minha percepção é um recorte da realidade. Andamos por um país destroçado, corrupto e sem rumo. Muitos vivem sufocados nas tradições religiosas, outros preferem amargar no total ceticismo. Sabemos que é necessário muito mais para ver este povo reverter o quadro desta nação. Ainda assim, entendo que nosso papel não é fomentar uma utopia, mas sim, focar nas flores raras que brotam em meio a sequidão do deserto.
Já estou contando os dias para ver novamente aqueles sorrisos e reencontrar pessoas carentes que nos pediram, sem palavras, para voltarmos. Não vejo a hora de receber mais um banho de motivação e esperança. Preciso ver novamente aqueles que vivem entre os escombros, que lutam por água e comida, mas que se alimentam com fartura da fé em Deus.
por Alyson Montrezol
Um comentário:
Nossa lindo texto!
Fazia tempo que não lia algo tão lindo, tão poético e tão inspirador.
Beijo para todos!
Amo o blog...
Mari Herman
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